Friday, February 27, 2015

Muda a Constituição para falar de inovação. Precisava mesmo?

Com a Emenda Constitucional no. 85, a Constituição, que não falava em inovação, agora fala. E os capítulos do meu Tratado e do Direito de Inovação em que se discutia o estatuto constitucional da ciência e da tecnologia perderam a validade. Antes que o Procon interdite meus livros por vender comida fora da validade, vamos nos apressar em constatar as mudanças.

Em primeiro lugar, a maior parte das alterações não chega a ser sequer cosmética. "Inovação" ganha a cintilância constitucional e passa a ser uma das virtudes cardinais de Platão, ao lado da prudência, da moderação, da fortaleza  e da justiça. O quadro comparativo abaixo indica onde a expressão inspirada em São Schumpeter passa a integrar o catecismo.

Bom, o que quer dizer "inovação", então? Se não é ciência nem tecnologia, nem o resultado delas, e para não imaginarmos que o Congresso gastou tempo fazendo coisa alguma com o dinheiro dos contribuintes, temos que concluir que agora a inovação não tecnológica ganhou foros augustos.  Vamos ter dinheiro público para inovações de marketing, de publicidade, de métodos de negócio....

Além disso, vejamos as alterações: 
  1. A Emenda explicita que a tecnologia e a inovação está agora na competência concorrente legislativa  e de poderes da União, dos Estados e dos Municípios a tecnologia e a inovação. O Art. 218 já dizia que promover a ciência e a tecnologia não só estava na competência, mas no âmbito dos deveres constitucionais desses entes todos. A mudança evidencia o que já era óbvio. Espero que não tenha custado muito de dinheiro público. 
  2. Numa alteração que pode ter alguma importância para a orçamentação das atividades de CT&I, o art. 167 foi alterado para que a "transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra (...) no âmbito das atividades de ciência, tecnologia e inovação" deixem de ter como condição a aprovação do Legislativo. 
  3. O art. 213, que se volta ao financiamento público de instituições de ensino, aumenta o rol das atividades de universidades e ICTs privadas que podem ser apoiadas, acrescendo às  atividades de pesquisa e extensão as de estímulo e fomento à inovação, e também somando como beneficiárias as instituições de educação profissional e tecnológica.
  4. No art. 218 § 3º, a emenda acrescentou  "apoio às atividades de extensão tecnológica" entre as atividades de recursos humanos a serem estimuladas.
  5. No § 6º do art. 218, a emenda determina que os entes estatais se articulem para os fins de CT&I. (Evidentemente seria preciso mudar a Constituição para se implantar uma ideia tão instigante e ... inovadora).
  6. No  § 7º  a emenda incentiva que as instituições de CT&I tenham atuação no exterior. (O relator dessa emenda deve estar depositando patente de invenção no INPI para essa iniciativa revolucionária). 
  7. O art. 219 ganha um parágrafo único para acrescer à missão estatal de CT&I as atividades inéditas e surpreendentes de "parques e polos tecnológicos e  demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia".  Sem tal alteração constitucional, tais atividades jamais poderiam ter sido incluídas na Lei de Inovação, e se já o foram, seguramente a inclusão era inconstitucional e írrita ao direito pátrio. 
  8. Cria-se um art. 219-A para se dar estatuto constitucional ao que já estava no art., 19 da Lei de Inovação
  9. Pelo art. 219-B institui-se, a nível constitucional, o  Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI),  que já descrevia a complexa rede de normas e instituições dos vários entes  federativos sob o dever geral de estímulo de ciência e tecnologia que desde 1988 resulta do art. 218 da Constituição. A diferença é que se prevê uma lei nacional para regulamentar o sistema. 
Não mencionamos até agora a modificação textual que, a nosso ver, representa a maior alteração no desenho constitucional das atividades de ciência e tecnologia. Sob a redação anterior, que era
§ 1º - A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências.
assim dissemos em nosso Direito da Inovação 2a. Edição, Lumen Juris (2010):
A ciência e o domínio público
A primeira questão que o artigo 218 aponta é a vocação da ciência ao domínio público.
A pesquisa científica caracterizada como básica, ou seja, não aplicada a soluções de problemas técnicos específicos, voltada à atividade econômica, receberá tratamento prioritário do Estado. Essa prioridade é relativa em face à pesquisa de capacitação tecnológica, fato que, no caso da ciência, o Estado é presumivelmente a principal fonte de incentivo e de promoção.
A atividade estatal terá como proposta o bem público e o progresso da ciência. Na repartição dos encargos da produção de conhecimento, a pesquisa básica não é apropriada, em princípio não é apropriável, nem pelos agentes privados da economia e nem pelos estágios nacionais. Esse conhecimento, em princípio, é produzido para a sociedade humana como um todo, para o bem público em geral. É o que a Constituição diz.
O elemento final da mesma cláusula refere-se o progresso em ciências e reitera assim a natureza da destinação dessa atividade estatal ao domínio público, indiferenciado e global. Nota-se que no artigo 200 da Constituição, inciso X, existe mais um dever do Estado, que é específico, sobre pesquisa no setor de saúde. 
A nova redação não terá o mesmo entendimento. Vejamos:
§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.
Com efeito, já não há mais a cesura textual entre a atividade prioritária do Estado (a ciência básica) e a tecnologia, que merece todo o parágrafo segundo. A prioridade vai agora para as duas modalidades (curiosamente, quando tanto se alterou para isso, não para a inovação...). E a expressão "o progresso das ciências" (que existe, idêntica, na Constituição Americana)  para a ser o "progresso da ciência, tecnologia e inovação".

Assim, não se consagra mais na Constituição que a Ciência básica financiada pelo estado destina-se ao domínio público,e a tecnologia à apropriação. É uma vitória dos patrimonialistas: mantido em sigilo, resguardado, o saber científico agora pode (o que não significa que deva ou seja em todos casos) excluído do domínio comum.

Mas, pelo § 2º  do art. 218, continua o dever estatal de apropria-se da tecnologia gerada com fundos provindos do contribuinte.

Quadro comparativo





Monday, February 16, 2015

Patentes essenciais a um padrão: a alteração da política do IEEE.

A questão de pools de patente - a junção de várias patentes de titulares diversos sob algum tipo de administração conjunta - é coisa antiga em Propriedade Intelectual. Na dissertação do meu primeiro mestrado, em 1982, dizia-se o seguinte:
O "pooling" de patentes não é, por si dó, uma prática abusiva; é, no entanto, uma das maneiras mais eficazes de controle de um mercado, quando os participantes do "pool" se voltam contra um "outsider"(1).
Mais recentemente, como a questão das patentes essenciais a um padrão técnico (como DVD, ou USB) se tornou um dos temas mais importantes do momento,  tive a oportunidade de escrever e orientar academicamente sobre a matéria, e dar até agora dois pareceres (2).

O tema surge quando múltiplos agentes econômicos pactuam um determinado padrão técnico, com tecnologias subjacentes que se encontram no escopo de múltiplos titulares. A adoção de um desses padrões por uma organização especializada (como a IEEE, que é algo análogo à nossa ABNT, ou outra) ou por um arranjo ad hoc (aí, sim, um patent pool clássico) vai presumir que as patentes sejam colocadas num commons (ou espaço de uso comum) fechado aos membros que contribuem com patentes.

Mas a criação de um padrão, se o commons é fechado aos contribuintes de patentes essenciais, estabeleceria um enorme poder para os que estão dentro, e uma colossal exclusão para os que estão fora. Ocorreria a hipótese de que eu falava em 1982, quando os participantes do "pool" se voltam contra um "outsider"...

Assim, os órgãos antitruste ou - eventualmente -  o bom senso das organizações padronizadoras impõem àqueles que querem colocar patentes como essenciais num padrão que se comprometam a ofertar licenças a terceiros indiscriminados - qualquer um, na verdade - em condições justas, equânimes e razoáveis (daí o acrônimo RAND ou FRAND), que qualifica essas ofertas de licenças.

http://www.ftc.gov/sites/default/files/attachments/press-releases/google-agrees-change-its-business-practices-resolve-ftc-competition-concerns-markets-devices-smart/google-patents.jpg
Tudo bem então: os padrões aproveitam à economia de redes e ao público em geral, e não só os que contribuem patentes, mas todos agentes econômicos passam a ter acesso à tecnologia padronizada. O melhor dos mundos para todo mundo.

É aí que vem o comportamento oportunístico para solar o bolo.

De um lado, daqueles terceiros que querem a facilidade sem pagar os royalties das licenças ofertadas, nem cumprir com suas condições. Pois as licenças FRAND podem ser gratuitas, ou não. Desde que justas, equânimes e razoáveis, elas podem ser pagas, em princípio sem infração das regras.

De outro, dos titulares de patentes que, beneficiários da inclusão de sua exclusiva num padrão de mercado - o que torna a patente inevitável mesmo se houver alternativas tecnológicas - que se valem de sua posição de poder para escorchar terceiros.

Assim é que, faz algum tempo, titulares de patentes (ou os famigerados trolls, que adquirem patentes que não criaram, ou o direito de as usar em ações judiciais) têm utilizado patentes essenciais para falsear as condições ótimas de um padrão sob oferta FRAND; e múltiplos agentes econômicos vão empurrando com a barriga suas obrigações para com os titulares. Ladrões que roubam ladrões em prejuízo do público em geral, de cujo bolso saiu a primeira carteira roubada antes da circulação oportunística; em prejuízo também dos agentes sérios e cumpridores de suas obrigações FRAND.

Nesses termos é que tem surgido uma reação contra os trolls e outros oportunistas titulares de patentes. Algumas decisões judiciais e mudanças nas políticas de organizações padronizadoras tem enfatizado o que - pelo menos no direito brasileiro - é mais do que óbvio. O que é óbvio?

Se você faz uma oferta pública de licença, não pode voltar atrás perante aqueles que tenha aceito incondicionalmente a oferta. Se o do titular das patentes essenciais ao padrão compromisso com as organizações é que a oferta seja justa, equânime e razoável, ela tem de chegar ao público com essas qualidades, e não como um achaque disfarçado. Assim, se a oferta pública é feita, ela tem de ser cumprida pelo titular da patentes - é o óbvio. Os europeus ainda andam sugerindo que para não haver dúvidas que a oferta seja justa, equânime e razoável, seus termos deviam se arbitrados por uma fonte neutra.

Bom, faz uns dias a IEEE emitiu sua nova política quanto às patentes essenciais a um padrão, que inclui muito enfaticamente uma proibição do tal oportunismo dos titulares das patentes.  O parâmetro sugerido pela organização padronizadora (e em princípio aceito por um comunicado de um órgão antitruste americano) não é absurdo, e não se contrapõe essencialmente ao critério publicado pela AIPPI em maio de 2014.

Algumas reações de escritórios e publicações especializadas consideram razoáveis as alterações da IEEE; eu entendo que - quanto à questão do dever dos titulares de se aterem aos termos da oferta pública - o resultado visado pela IEEE já ocorria no direito brasileiro. Aqui no Brasil, não acredito que nada mude quanto ao ponto, mesmo se outras organizações padronizadoras (além da IEEE) repetirem a dose.

Mas o povo dos oportunistas está uivando. Onde já se viu o Estado se metendo no lídimo direito de se desdizer nas promessas e de achacar o mercado? Pior ainda, onde já se viu instituições de private ordering se voltarem contra os "inovadores", que não só trazem novas tecnologias para o mercado como ainda mantém a tradição dos barões ladrões que tanto divertiam Engels?


Notas 
 (1) BARBOSA, Denis Borges, Know how e poder econômico, Universidade Gama Filho, Mestrado em Direito Empresarial, Orientador: Prof. Dr. Fabio Konder Comparato (1982), encontrado em http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/concorrencia/disserta.doc. Fique claro que a colocação de uma patente como essencial a um padrão não importa necessariamente em alienação dela a um condomínio nem em administração centralizada; a simples submissão do titular da patente as regras da organização, inclusive à obrigação FRAND, já poderia perfazer a condição de acesso aos membros da organização, e a terceiros, que viabiliza a doção do padrão técnico multi-patente. 

(2) BARBOSA, Denis Borges, Intellectual Property and Standards in Brazil, A study prepared on support of the “American Academy of Sciences” study on IP Management and Standard-Setting Processes (2013), encontrado em http://sites.nationalacademies.org/cs/groups/pgasite/documents/webpage/pga_072297.pdf ; BARBOSA, Denis Borges, Patentes, padrões técnicos e Ofertas de licença FRAND em direito brasileiro  (abril de 2014), encontrado em http://sites.nationalacademies.org/cs/groups/pgasite/documents/webpage/pga_072297.pdf, visitado em 14/2/2015; http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/patentes_padros_ofertas.pdf. BARBOSA, Denis Borges, Intellectual Property and Standards in Brazil, encontrado em http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/novidades/ip_standards_brazil.pdf;  SILVA, Denise Freitas (autor),Pools de patentes: impactos no interesse público e interface com problemas de qualidade do sistema de patentes, Tese apresentada ao Corpo Docente do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de DOUTOR em Ciências, em Políticas Públicas Estratégias e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Dr. Denis Borges Barbosa,  Rio de Janeiro 2012, encontrada em http://www.ie.ufrj.br/images/pos-graducao/Denise_Freitas_Silva.pdf; BARBOSA, Denis Borges, Nota sobre a aplicação da doutrina das essential facilities à Propriedade Intelectual (2005), encontrado em www.denisbarbosa.addr.com/essential.doc;  BARBOSA, Denis Borges, As alterações necessárias na legislação brasileira de propriedade intelectual para completo aproveitamento das flexibilidades de TRIPS. Estudo para a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, (2010), encontrado em http://www.academia.edu/4406249/As_altera%C3%A7%C3%B5es_necess%C3%A1rias_na_legisla%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_propriedade_intelectual_para_completo_aproveitamento_das_flexibilidades_de_TRIPS._Estudo_para_a_Secretaria_de_Assuntos_Estrat%C3%A9gicos_da_Presid%C3%AAncia_da_Rep%C3%BAblica_2010_, visitado em 14/2/2015.