Tuesday, March 11, 2008

Da série: o pibrasil não viu

Queria trazer aqui uma ponderação sobre a necessidade de trazer inteligência constitucional à interpretação do CPI/96, especificamente no tocante às invenções da área biotec. Em um trabalho relativamente recente (Maria Ester Dal Poz e Denis Borges Barbosa, Incertezas e riscos no patenteamento de Biotecnologias: a situação brasileira corrente, Capítulo do livro Propriedade Intelectual e Biotecnologia, Vanessa Iacomini,org., 228 pgs,Juruá Editora, 20/8/2007, encontrado em http://denisbarbosa.addr.com/esterdenis.pdf) foi expressa a impressão de que, para as políticas públicas brasileiras, o setor de biotec nos obriga a uma interpretação expansiva e pró-patente.

A raiz constitucional dessa convicção é o do importantíssimo julgamento da corte constitucional italiana, que, por meio de simples interpretação constitucional, introduziu a patente de medicamentos naquele sistema jurídico, em 1978:

Na realidade, nos últimos anos a tomada de consciência da ausência superveniente de todo fundamento racional da exceção cresceu concomitantemente com a afirmação do valor da pesquisa técnico-científica e do dever da República para promovê-la; com a mais elevada capacidade da indústria farmacêutica italiana em organizar a pesquisa, também em relação às condições de competitividade com os outros países; e finalmente com as mais intensas relações com os mercados estrangeiros, particularmente no âmbito dos estados pertencentes à organização do Conselho da Europa e aqueles da Comunidade Econômica Européia (como resta provado pelas convenções estipuladas pelo governo italiano, todas orientadas a restringir ou a eliminar radicalmente a possibilidade de vedar a concessão da patente em setores específicos). (Corte Constitucional da Itália, 1978, Sentenza 20/1978 )
Ou seja, a leitura de acordo com a constitução leva leva em conta exatamente o equilíbrio dos interesses nacionais em face do processo de patenteamento, e quando mudam os pressupostos, exigindo um reequilíbrio de interesses, tal deve ser expresso não só na política pública mas na aplicação da norma. Como, neste caso, não há nenhuma necessidade de alteração normativa, mas de simples aplicação de norma, trago aqui minhas observações.

Numa conversa, vigorosa e sólida, com uma examinadora de patentes do INPI, da área biotec, confirmei o que intuía: a prática corrente é tratar o 10,X como se fosse uma proibição política - como se tratasse do art. 18. Tenho afirmado minha convicção (vide o meu artigo sobre patentes de software que saiu em dois números da revista da abpi ano passado) de que o art. 10, exigindo que haja "invento", expressa a necessidade constitucional de que haja - como pressuposto de patenteabilidade - uma solução técnica para um problema técnico.

Ou seja, trata-se de um requisito estrutural, e não incidental (como são as proibições do art. 18) do sistema patentário. Mas a leitura literal do art 10 não distingue entre o art. 10 e o 18; a prática é apenas preceder a aplicação do artigo de número menor. A doutrina e jurisprudência (vejam o tal artigo a que referi) apontam para a funcionalidade do disposto no nosso art. 10: não é um conjunto de proibições, mas de índices. EM princípio, um algoritmo (e sempre, se se descreve um algoritmo em si mesmo) não resolve um problema técnico com uma solução técnica. Mas qualquer solução técnica, que resolva um problema técnico (e não somente prático à maneira do julgado State street, ora sob reexame) , importe ou não em uso de algoritmo, será invento. Ou, numa área em que sou "técnico", um conhecimento de natureza estética (como executar o estilo ornamental francês do séc. XVII, na pesquisa do Early Music Laboratory de Sol Babitz) não será invento, mas alguma coisa que me facilite fazer apoggiatura no f# da minha flauta de forma repetível e "industrial", será.

Argumenta-se com a idéia (onde está a fonte próxima disso? no Chakrabarty? ....leram sem atenção) de que no produto natural não há INTERVENÇÂO HUMANA. Intervenção humana não é requisito de invento, e sim de apropriação. Se há uma solução técnica para um problema técnico, mas não houve o ato de autoria da solução, simplesmente os efeitos patrimoniais da invenção não serão atribuíveis àquele que se arroga inventor. A falta de intervenção humana é uma questão de imputabilidade da solução a um determinado sujeito de direito. Invento é a capacidade de resolver uma questão técnica.

Assim, como já explicava o velho Waldemar Ferreira:
“(...) pode ocorrer que as fôrças da natureza sejam surpreendidas não somente em suas leis , mas dominadas a serviço de nosso bem-estar. A invenção condiz com o domínio do útil e, como tal, se contrapõe à descoberta, que se refere ao domínio da verdade, devendo traduzir-se em nova utilidade.” FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. Volume VI. São Paulo: Edição Saraiva, 1962.
Como a noção de "utilidade industrial" refere-se ao requisito da repetibilidade:
“A invenção deve ser real, por outra, a possibilidade de realizar, de executar a idéia do inventor é condição essencial para o reconhecimento legal dela. Isso significa que a invenção deve ser apta a produzir, com os mesmos meios, resultados constantemente iguais; que deve ser suscetível de repetição, estabelecendo o seu autor a relação de causa e efeito entre os meios empregados e o resultado obtido e realizado na invenção. Assim, são excluídas da proteção legal as invenções charlatanescas, que visam a abusar da credulidade do público.” (MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Atualizado por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2003.,p. 153)
Há, no entanto, uma cláusula do art. 10, X que entendo na verdade uma proibição política: a que, indicando que só há invento quando haja solução técnica, excepciona dessa regra o IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais". Carlos Correa já apontou que isso é pura política pública, e má política no tocante ao Brasil. Isso é matéria do art. 18, e deve assim ser tratado, salvo mudança normativa pelo Congresso.

Assim é que entendo necessária a alteração da prática do INPI em interpretar literalmente o art. 10, X. Não é a "todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza" que é vedado o patenteamento, mas àqueles elementos que não apresentem uma solução técnica para um problema técnico (com a exceção apontada).

Entendo também (e isso tenho expressado seguidamente a alguns integrantes do GIPI) que essa interpretação (ou qualquer outra, inclusive a discutida nos grupos de estudo em curso no INPI), como expressão de uma política pública (no caso, a literalidade é uma política pública, de caráter naïve e formulada no âmbito puramente técnico, o que é antidemocrático) deve ser expressa como decisão orgânica de estado. Uma diretriz. E quando necessário, a política deve ser submetida ao Poder Legislativo. Como a proibição de patentes de segundo uso, o que acho justíssimo, mas não por decisão do board da Anvisa. Aliás está sendo projeto de lei, sob os comentários de que seria "uma descoberta". O que - sendo solução técnica - não é. Pode até não ser de quem pede patente, mas não deixa nunca de ser invento.